Estamos em uma nova Era de Ouro do Cinema

Por Nicolas Barber*p045j37h

Está é a lista dos Melhores Filmes do Século XXI, elaborada pela BBC em conjunto com 177 críticos ao redor do mundo. A lista dos dez melhores – encabeçada por um neo-noir surrealista americano primeiramente pensado como um piloto para a TV – inclui: uma animação japonesa sobre uma menina que trabalha em uma casa de banho para monstros (Viagem de Chihiro, em quarto lugar), um retrato aparentemente sem enredo da vida de um garoto no Texas (Boyhood, em quinto) e uma melancólica comédia romântica envolvendo uma máquina de apagar memórias (Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, na sexta posição).

ELLAR COLTRANE BOYHOOD (2014)Mesmo o cinéfilo mais experiente em festivais internacionais tende a assistir mais filmes em inglês que os demais. Ainda assim, a lista continua sendo uma seleção incrivelmente diversa e internacional, incluindo um inovador documentário sobre o genocídio na Indonésia (O Ato de Matar), junto de um drama romeno sobre aborto (4 meses, 3 semanas e 2 dias) e uma fantasia sobre um submundo onírico na Espanha Franquista (O Labirinto do Fauno), seguido de uma odisséia francesa sem gênero-definido, com a participação de Kylie Minogue e carros falantes (Holy Motors). Animações à parte, não há muito entre os mais bem classificados da lista que possam ser classificados como entretenimento “para o povão”.

Que conclusões podemos tirar disto? Uma delas seria que Steven Soderbergh e Yorgos Lanthimos não são os queridinhos de crítica como poderia-se pensar. Outra seria que deveria haver mais filmes dirigidos por mulheres no mundo. Porém, a abundância de nomes notáveis e inovadores na lista sugere que o cinema está com muito mais gás do que nós costumamos acreditar.

Nova Ordem Mundial
Basta uma espiada em qualquer página de notícia sobre os negócios do cinema e você vai encontrar um título dizendo que Hollywood está decaindo, que o merchandisgn está em alta e que os diálogos estão sendo substituídos por grunhidos e frases monossilábicas para que os filmes possam ser exportados com o mínimo de dublagem. Há notícias sobre cinemas fechando, da pirataria destruindo a indústria de zilhões de dólares, da televisão oferecendo narrativas mais sofisticadas do que as modestas salas de cinema.

No entanto, os inventivos 100 filmes nesta lista indicam que, apesar de tudo isso, nós talvez estejamos vivendo em uma era de ouro do cinema. É visível que a análise não se baseia em gigantes do final do século XX: Spielberg e Scorsese têm apenas um filme cada; Mike Leigh, Ken Loach, Werner Herzog e os irmãos Dardenne estão ausentes; e o único Coppola a aparecer não é Francis e sim sua filha Sofia. E ainda assim a velha guarda faz muita falta. Há uma imensidão de filmes surpreendentes por aí se você souber onde encontrá-los – e saber onde encontrá-los nunca foi tão fácil.

The White Ribbon 2009 directed by Michael HanekeOs críticos estão, sem dúvida, em uma vantagem desleal quando se fala de ter acesso às melhores produções. Se você tem o privilégio de ser pago para escrever sobre cinema ou, melho ainda, cobrir festivais que “servem” o melhor dos cardápios, você talvez tenha uma visão mais apurada de como anda a sétima arte do que quem precisa escolher entre Esquadrão Suicida e A Lenda de Tarzan em uma sexta-feira à noite.

Apesar disso, nenhum de nós está tão longe de um ótimo filme como costumávamos estar. No século XX, qualquer um que estivesse a fim uma contemplação monocromática sobre as raízes do nazismo (A Fita Branca) no mínimo teria uma tarefa difícil em mãos. Mesmo no auge dos cinemas alternativos e das locadoras de VHS, você teria que esperar um bom tempo para que um magnífico autoral simplesmente caísse em seu colo. Porém, no século XXI, qualquer um com acesso à internet não encontra problemas em procurar filmes sobre cidades sendo devastadas em 3D.

FINDING NEMO 2003 Buena Vista animation. Image shot 2003. Exact date unknown.Estamos sempre a um clique ou dois de um trailer interessante no youtube, uma satisfatória análise em um site didático ou uma discussão entusiasmada em um fórum ou sessão de comentários. Alguns outros cliques mais e nós podemos comprar o filme em si, seja em DVD ou via download. É verdade que assistir a um claustrofóbico mistério doméstico iraniano (Uma Separação) em casa pode não ser o mesmo que vê-lo em uma sala de cinema lotada. Porém, tanto para os cineastas quanto para o espectador, é melhor do que nem assistir.

É hora do digital
O tal mundo globalizado tem suas complicações, claro. Enquanto os estúdios apostam cada vez mais em faturamentos internacionais e merchandising, eles investem mais e mais recursos em blockbusters de super-heróis e ficção científica. Os dramas de sucesso, prestigiados policiais e respeitáveis adaptações literárias que costumavam atrair tanto o público quanto estatuetas nos anos 80 e 90 perderam força.

Diretores costumam reclamar desta tendência. Ao invés de poder contar histórias maduras e humanas sobre a vida contemporânea, eles têm que se apegar seja às ficções científicas de grande orçamento ou minúsculos filmes independentes. Porém, há um lado bom neste efeito de polarização: o século XXI presenciando a morte dos famigerados caça-prêmios. Foi-se o tempo em que Harvey Weinstein arranjava os direitos de um bestselling, contratar Lasse Hallström para dirigir uma versão médio-orçamento, quase-cult e esperar sentado enquanto as indicações ao Oscar sobem na tela.

alwigmmrxqrcpijhkgmlAo invés disso, diretores têm que ou tentar em encaixar nos blockbusters sua própria marca idiosincrática – como George Miller fez em Mad Max: Fury Road e Christopher Nolan em O Cavaleiro das Trevas – ou têm que investir suas energias em projetos mais experimentais e pessoais. E enquanto talvez pareça uma dura tarefa conseguir recursos para estes filmes, nossa lista é a prova inspiradora de que é possível. Novamente, isso está bastante relacionado com a tecnologia digital. Leos Carax filmou Holy Motors com câmeras digital, sob protesto, porque não conseguiu garantir o orçamento para usar película, mas a excêntrica obra de arte resultante é tão intrinsicamente digital em seu visual e textura que é difícil imaginá-la de outra forma.

Carax não está sozinho em se apegar à película em vez do vídeo digital. Apichatpong Weerasethakul declarou que Tio Boonmee que Pode Recordar Suas Vidas Passadas é, entre outra coisas, seu lamento pela eminente extinção da película – e não se consegue estar em uma sala com mais de três cinéfilos sem que um deles fique vangloriando sobre o peso de um rolo de película e o som do projetor. O vídeo digital tende a ser menosprezado como um barato e mal-visto substituto.

No entanto, mesmo cineastas que desdenham do digital estão tendo que dar o braço a torcer que ele está a trazendo todos os tipos de possibilidades fascinantes. Mais evidente, estão as animações, como WALL-E, Divertidamente e Procurando Nemo, que não existiriam sem computação gráfica. (E sem a Pixar, animação por computação gráfica nem existiria como é hoje).

MELANCHOLIA 2011 Magnolia Pictures film with Kirsten Dunst. Photo Christian Geisnaes

E, em seguida, há os filmes que usam a tecnologia digital como seu tema principal, como Caché de Michael Haneke e A Rede Social de David Ficher. E há outros ainda que usam esta tecnologia para fazer arte sublime: assistir o hipnotizante prólogo de A Árvore da Vida de Terrence Malick e Melancolia de Lars Von Trier é o mais próximo que alguns de nós iremos chegar de uma experiência religiosa.

Esse é apenas o começo. Enquanto as câmeras digitais continuam a ficar melhores e mais leves, e o streaming cada vez mais rápido, fica cada vez mais acessível para qualquer não somente fazer seu próprio filme, mas distribuí-lo ao redor do planeta. Agora já não é incomum para um filme ser gravado em um país, editado em outro e receber a trilha sonora em um terceiro. Em breve, poderemos conversar sobre ‘cinema mundial’ de maneiras nunca antes experimentadas. E tudo devido aos avanços surgidos no século XXI. É daqui para os próximos 83 anos.

* Traduzido por Rom Sousa